Poesia escrita em Vizela por Guerra Junqueiro

Com a prestimosa colaboração de António Cunha (músico da Sociedade Filarmónica Vizelense) o Digital de Vizela já publicou três artigos sobre a presença em Vizela de Guerra Junqueiro e sobre o pai do escritor que viveu e morreu em Vizela.
Com a mesma colaboração é possível agora publicar este belo poema de amor do grande escritor português CARTA A MIMI escrito em Vizela em 1883 talvez nas frondosas margens do rio.

Poesias Dispersas

CARTA A MIMI

Eu desejava, açucena, 

Para te escrever a ti, 

Que alguém me desse uma pena 

Da asa d'um colibri,


E fosse uma cotovia 

Por essa amplidão sonora 

Molhar-ma ao romper do dia 

Na tinta fresca da Aurora,


Tinta vermelha e doirada, 

Com que Deus fez de improviso, 

Há séculos a alvorada, 

E há meses o teu sorriso.


Depois, quando à tarde 

o sol Mergulha na imensidade, 

Pediria a um rouxinol 

Da minha antiga amizade.


A um rouxinol, que em junho 

Vem sempre aqui de visita, 

Que me escrevesse um rascunho 

D'uma carta tão bonita,


Tão mimosa e tão saudosa, 

Que tu julgasses, ao lê-a, 

Que era d'um anjo a uma rosa, 

Que era d'um lírio a uma estrela!


Ah, como a palavra zomba 

Da ideia! 

Desisto, amor! 

É o mocho a escrever à pomba; 

É o verme a escrever à flor,


Quisera palavras cerúlas, 

Com a inocência infantil, 

E o mimo doce das pérolas, 

E a graça tenra d'abril;


Quisera versas, harpejos, 

E rimas d'oiro a cantar, 

Como um trinado de beijos 

N'um jasmineiro ao luar;


Quisera expressões e frases, 

D'um sentimento extra-humano, 

Cheirando a orvalho, a lilases 

E a rosas de todo o ano,


Expressões d'uma inocente 

Candura intacta d'arminho, 

Virgens como a água corrente 

E azuis como a flor do linho.


Mas não há verso, nem rima, 

Nem arte alguma, Mimi, 

Que do fundo d'alma exprima 

O amor que eu te tenho a ti.


Pois como hei de eu concentrar 

Esta saudade, esta mágoa 

N'um verso?...como há - de o mar 

Caber n'uma gota d'água?!


Oh, é tal esta saudade, 

E é já tão grande o desejo 

De te ver, que na verdade 

A toda a hora eu te vejo,


Quando no azul transparente, 

Envolta em cândido véu, 

Assoma divinamente 

A aurora o pudor do céu,


Lembra me essas setinosas, 

Mimosas faces vermelhas, 

Que dariam sangue às rosas 

E mel doirado às abelhas.


Quando vou pelos caminhos, 

Verdes como madrigais, 

E oiço o murmúrio dos ninhos 

Gorjeando entre os sinceirais,


Eu cuido que és tu, Maria, 

E essa ilusão não me espanta: 

Um berço que balbucia 

É igual a um ninho que canta!


Se vejo (cabeça Louca!) 

As frescas rosas singelas, 

Confundo-as com a tua boca 

E vou-me aos beijos a elas.


Quando passa uma criança, 

Contradição singular! 

Vens-me tu logo à lembrança, 

E fico a rir... e a chorar.


Entre as silvas e os abrolhos 

Há miosótis de setim, 

Que eu julgo serem teus olhos 

Que estão a olhar para mim.


Nunca de ti me separo, 

Quer ande longe, quer perto: 

Tu és o sol sempre claro 

E eu sou o olhar sempre aberto.


Em tudo o que a amar convida, 

Em tudo que nos seduz, 

Na infância aurora da vida, 

Na aurora infância da luz.


Em tudo eu vejo disperso

O teu retrato, Mimi:

Deus espalhou no universo

O amor, reuniu-o em ti!...

Caldas de Visela - 1883.

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