A Fonte da Preguiça e a Nogueira da Miséria de Vizela

O nosso colaborador António Cunha descobriu mais uma pérola cultural do longínquo passado


 

Vizela, como tantas outras localidades portuguesas, são ricas em contos e lendas. Com um passado milenar, Vizela tem ainda muito por descobrir sobre esta temática.    

Numa publicação de 1890, denominada “Brinde aos Senhores Assignantes do Diário de Notícias”, impressa em Lisboa na Typographia Universal, é apresentada uma Lenda do Minho, escrita por João Mendonça, que, apesar de embelezar este conto com termos um tanto fantasiosos, algo que era comum na literatura de viagem, escrita no século XIX, dá-nos elementos preciosos sobre Vizela e a nossa história. 

Fonte e tanque da Preguiça 

Fala-nos em locais ou lugares que ainda hoje pertencem à nossa toponímia, e elementos arquitetónicos / arqueológicos que já terão desaparecido, ou que pelo menos se conhece pouco como a sua o tanque da fonte da preguiça na Rua de S. Paulo (Cucurru) em S. João das Caldas (descrito como um excelente exemplar da opulência na construção dos nossos antepassados), e mesmo a localização da própria fonte. O próprio regato, que apenas por suposição, o localizei na rua da Porteladinha, e que de fato existe, e apresento aqui a sua foto atual. 

Fiz a transcrição deste interessantíssimo texto para português atual para uma melhor leitura, e espero que apreciem este maravilhoso conto.  ANTÓNIO TEIXEIRA CUNHA

 


João de Mendonça 

A FONTE DA PREGUIÇA 

E A NOGUEIRA DA MISÉRIA 

(LENDAS DO MINHO) 

 

Era uma tarde esplendida de setembro. 

O sol apenas declinava para o horizonte e iluminava ainda vivissimamente os formosíssimos campos de Vizela, povoação tão pitorescamente situada entre as serras de S. Bento e de S. João das Barrocas. 

Eu e o meu amigo José Prado, que é um abastado proprietário d'aqueles sítios, íamos de passeio pela estrada, que encaminha a Penafiel. Tínhamos deixado á esquerda os afamados banhos do Mourisco e, avistando mais abaixo o umbroso e ameno sítio da Cascalheira, onde o Rio Vizela se espraia sob denso arvoredo, tornejámos pela vereda da Cruz perdida e embrenhámo-nos através dos campos e pinhais, em sombrias azinhagas até aos lugares de Barreira e Porteladinha. 

Ali corre, por entre pedras passadeiras, um regato, que dimana mansamente formando meandros e banhando pés de myosotis em flor. 

Trepámos uma escabrosa encosta, caleada de grossos calhaus e ensombrada de corpulentas e copadas carvalheiras, onde as vides se enroscavam em fantasiosas volutas, suspendendo, por entre pâmpanos vicejantes, belos cachos amadurecidos. 

De uma pequena mina escavada na montanha, cai em tanque de pedra, cujos lavores, que os séculos em parte respeitaram, atestam a arte primorosa de outras eras, em que aqueles lugares seriam mais frequentados, — uma veia de água cristalina. D'ali a nítida linfa, transborda e vai alimentar duas represas, que ladeiam o caminho. 

O murmúrio das águas alia-se agradavelmente ao cicio das folhagens por onde perpassa a viração, ao chilrear das aves e à toada triste, que os carros fazem ouvir ao passar nos caminhos. Essa harmonia é cortada pelos cantares plangentes, tão peculiares ao Minho, das mulheres, que andam nos trabalhos da lavoura. — Tem um nome bem singular, disse-me José Prado, esta fonte. Chamam-lhe a fonte da preguiça. — A amenidade do sítio, disse-lhe eu, a tranquilidade, que parece refletir-se d'estas ameníssimas paragens no espírito de quem as contempla, fê-la assim denominar. —E' possível, tornou o Prado, mas isso não obsta que haja uma história, lenda ou quer que seja, que explica esse nome, e a qual também se refere àquela vetusta nogueira, chamada a nogueira da Miséria, e ao celeste mensageiro S. Miguel, cuja imagem se venera em Vilarinho, na antiquíssima igreja, que nós vamos visitar. 

Antes de continuarmos, demorámo-nos alguns momentos n'aquele lugar de beleza, deveras fascinante. Os aspleniuns e trichomanes, fetos de folhagem finamente recortada, ornavam os muros e rochedos ensombrados daquela encosta. Em volta os carvalhos cerquinhos e molares agrupavam-se pitorescamente, apresentando nos troncos carcomidos a sticta pulmonacea, esse interessante lichen, cujo nome provém da sua semelhança comos pulmões humanos. Outros lichens, como a parmélia caperata, de cor verde-esmeralda e & parmelia aureolata, guarnecida nas suas margens, como de um cordão de ouro, vestiam aqueles troncos e davam gracioso contraste com as manchas esbranquiçadas, semeadas de traços, que parecem caracteres árabes ou semelham cartas geográficas, dos opegraphas e graphis, e os pontos pretos em grandes espaços brancos da verrucária nítida, emergindo de entre tufos d'esse musgo verde-amarelado, que semelha seda, e que tão justamente foi denominado Leskea sericea. O mato, matizado das flores amarelas das giestas, das flores em cacho róseas, violetas, azuis e purpurinas das urzes, e das flores alvíssimas e mimosas do leucojum automnale e bagas vermelhas dos azevinhos, era riquíssimo de tons de colorido e rescendia de um perfume balsâmico, acre, mas agradável. 

Continuámos a subir a Serra de S. João, passando por Sestais e S. Paulo. Deixando à esquerda um formosíssimo bosque de carvalhos, e subindo ao topo, deparou-se-nos um esplendidíssimo panorama.  

— Olha, disse José Prado, ali tens n'este vale belíssimo as quintas do Bairro e de Quintas. Na vertente oposta a esta, ficam as quintas da Agrela e do Paço, e, como fechando esta enorme bacia, estão os montes em que alvejam a capella de S. Bento e mais além a do Senhor Jesus dos Perdidos! 

Ora seguíamos os caminhos de carro, ora percorríamos o estreito atalho, fechado por vezes por altos pedregulhos, mas dispostos em forma de escada, tornando-se por isso de fácil acesso. São esses os Cancelos de cão, tão frequentes nos caminhos que atravessam campos de milho, hortas e vinhedos, e por onde passam povos, que vêm de grandes distâncias á igreja, nos dias de festa e santificados, e por isso a essas veredas lhes chamam caminhos de missa. Foi por um d'esses caminhos, que nos dirigimos ao antigo convento de S. Miguel de Vilarinho. Dele o que resta é bem pouco. Resta a igreja, acusando nas paredes e n'alguns restos de ornato arquitetónico, o que foi séculos. 

Na parte superior do adro acha-se construída uma excelente vivenda de casas. Na igreja alguns retábulos de boa talha dourada, retocada de pintura. No altar-mor, num quadro mal pintado, vê-se a imagem de S. Miguel, tendo o diabo aos pés. O santo, no modo como o pintor o vestiu, parece um figurino de anjo de loas. 

No claustro, transformado em pardieiro, vimos uma porta murada, onde n'um arco de volta abatida uma inscrição com a era de 1417, mas que não nos foi possível decifrar. Na soleira da porta lateral da igreja outra inscrição mutilada com o ano de 1611. 

Foi o cura, homem ilustrado e amável, que nos mostrou a igreja. Com o rosto sorridente, exprimindo bondade, convidou-nos para a ceia. A pedido de José Prado mandou chamar o velho sacristão, que era um narrador consumado, para que nos contasse as lendas, que eu vou narrar, tendo-as colhido, agora nas minhas reminiscências e recordações. Ainda era dia, quando nos sentámos à mesa. 

No Minho janta-se ao meio-dia e ceia-se ao pôr do sol. Por isso é muito para ver-se, ao recolher dos trabalhos do campo, como se exalta o fumo dos telhados de telha vã, da cozinha térrea, que também serve de lareira, e que emergem de entre a espessura viridente. A ceia foi alegre.  

Na lareira crepitava o fogo, esse bom fogo cujas faúlhas e centelhas tanto alegram. 

As vitualhas tinham sido regadas com um excelente vinho verde, e para o final da refeição o excelente cura oferecera-nos um belo transmontano com vinte anos de casa. Alguns d'esses copos deram aos nossos organismos esse bem-estar alegre e satisfeito, que sentimos depois de uma boa refeição. Invadia-nos uma agradável lassidão. Estávamos no momento psychico dos contos e narrações, e aspirando o fumo dos charutos prestámos os ouvidos.  

O velho começara a sua narrativa. 

Em tempos remotíssimos estas regiões abundavam de tudo, que é necessário ao gozo da vida. 

Homens e mulheres, velhos e crianças passavam parte do dia deitados á sombra das arvores, ou, no inverno, aconchegados á lareira. A terra, pujantíssima de força produtiva, alimentava de tal modo as plantas, que a semente lançada no solo dava 300 grãos por cada um, quase sem amanho. 

Todos, mais ou menos abastados, olhavam ao bem presente e descuravam do futuro. 

Alguns poucos dos que compunham o conselho dos anciãos, o qual se reunia junto á fonte, que da preguiçosa incúria d'essa assembleia tomou o nome, —tinham chamado em vão os seus concidadãos aos seus deveres, mostrando-lhes que a inércia, ou, mais propriamente, a preguiça, quando invade uma população, definha-a, esteriliza-a e mata-a, tendo-a antes prostrado sob o desprezo das outras populações, que não renegaram os seus direitos, antes os afirmaram pelos seus esforços e tornaram evidente a sua vida ativa. 

Mas quase todos tinham o pão na arca, o celeiro e a adega bem providos, e por isso não lhes calava no espírito essas exortações, que tomavam, como ditadas por espíritos sob a influencia do mau humor que lhes causava o bem-estar e a felicidade alheia. O povo chamava-lhes loucos e profetas de desgraça. 

Mais acima d'essa celebre fonte havia uma miserável choupana, coberta de telha vã e colmo, onde vivia uma pobre mulher de nome Miséria. 

Era mais velha que Matusalém, ou, talvez, tão velha como a humanidade. 

A sua única companhia era um cão magro e faminto, mas extremamente dedicado à sua dona. 

N'um pequeno cerrado, pertencente á Miséria, havia uma nogueira, que lhe dava saborosíssimos nogões. O único prazer da pobre velha, ela, que quase todo o ano roía nalguns pedaços de broa duríssima, era comer os frutos da sua nogueira. 

Eram-lhe condimento ao amargo pão esmolado. 

Mas os garotos, implacáveis, roubavam-lhe em grande parte essa consolação, mais por divertimento maldoso, que por necessidade. 

Todos os dias, Miséria, encostada a um bordão ia esmolar, acompanhada de seu cão Fiel. 

Batia a todas as portas, mas nem todas se abriam para lhe dar esmola. 

Os mais ricos repeliam-lhe as suplicas e cobriam-na de doestos. A abastança, em que viviam, desenvolvera-lhes em alto grau o egoísmo, e também a preguiça lhes embotara todos os sentimentos bons. Na sua criminosa indiferença, pelo sofrimento alheio, censuravam a autoridade, que permitia à Miséria, coberta de andrajos, que publicamente implorasse a caridade. 

Era dos menos protegidos da fortuna, que a mísera colhia algumas mealhas. Ainda assim, a sacola nunca se lhe encheu a mais de metade. 

No outono o peditório era-lhe mais penível, pois ia desacompanhada de Fiel, que ficava de guarda aos frutos da nogueira. Amavam-se tanto, que esse apartamento era dolorosíssimo para ambos, que choravam lagrimas de amarga saudade. 

Houve um inverno extremamente rigoroso, em que a terra se cobriu de extensa mortalha de gelo. 

Em noite caliginosa, em que o vento soprava tempestuoso e avergava as mais corpulentas arvores, os raios coruscavam na atmosfera, como largas fitas de fogo, e a chuva caía a jorros. 

Miséria, mal agasalhada nos seus andrajos e aconchegada a Fiel, despertou pelo ruido, que alguém fazia batendo-lhe á porta. 

Sempre que alguém se aproximava d'aquele pobre tugúrio, Fiel ladrava com furor. D'esta vez, porém, latiu alegremente e começou a mover a cauda como que a festejar a boa-vinda. —Por amor de Deus, gemeu uma voz dolorida, dai pousada a um pobre homem, que morre de frio e de fome. 

—Levantai o bedelho e entrai! 

Ninguém poderá dizer, que recusei abrigo a uma criatura de Deus! 

Entrou o forasteiro. Profundas rugas lhe sulcavam o rosto. No aspeto mostrava ser ainda mais velho que Miséria. Cobria-o apenas uma velha sotaina esfarrapada. — Assentai-vos, bom homem, disse-lhe Miséria. 

O pouco que tenho, lho ofereço de todo o coração! 

E Miséria lançou na lareira a sua última acha de lenha, e deu ao velho uns pedaços de broa de milho e centeio e algumas nozes, que lhe restavam. 

O velho aqueceu-se ao fogo, e comeu com apetite. 

Fiel deitara-se-lhe aos pés e acariciava-lhos. 

Quando o hospede acabou a frugal refeição, Miséria envolveu-o num cobertor de serapilheira e fê-lo deitar na sua enxerga, enquanto ela se deitava no chão, encostando a cabeça a uma velha arca, para dormir. 

No dia seguinte, Miséria despertou cedo, e, como nada mais tivesse que dar ao hospede, lembrou-se de ir esmolar. Chegou-se á porta, abriu-a e viu que a tempestade serenara. Voltou-se para agarrar no bordão e viu de pé o hospede.

 —Infeliz Miséria, conheço o teu bondoso intento, disse-lhe ele. E finda, porém, a minha missão. 

— Quem és tu? exclamou Miséria. 

A estas palavras o velho transfigurou-se n'um formoso mancebo de rosto radiante.  

— Sou o Arcanjo Miguel, tornou ele. Por mandado divino vim a estes sítios experimentar a caridade dos homens. Bati á porta dos opulentos e felizes do mundo e todos eles me repeliram. Foste tu, pobre velha, a única pessoa, que me recolheu e agasalhou, sofrendo na tua miséria pelo bem do próximo. Vais ser recompensada. 

Miséria, que ajoelhara, pondo as mãos, disse: 

— Formoso arcanjo, eu nada vos peço. Vivo feliz na minha pobreza e não faço a caridade por interesse.  

— Bem sei, tornou o santo. Tu pagas com bênçãos e votos de felicidade as parcas migalhas que te dão, e perdoas aos que te maltratam e escarnecem. Tu eras tão desgraçada como eu, e fostes tu que tiveste compaixão da minha desgraça. Deus quer recompensar-te. Formula um desejo e serás satisfeita.  

—Poderoso santo, nada vos peço porque nada desejo.  

— Nada tens e nada queres? Fala! 

Miséria continuava calada.  

— Queres ser abadessa de Santa Clara de Coimbra? Queres ser a senhora direta dos censos de todas estas terras? Queres ser jovem, bela e rica? Desejas honras e riquezas? 

A todas essas ofertas Miséria abanava a cabeça. 

— Não me recuses o prazer de te recompensar ou julgarei que o fazes por orgulho.  

—Já que assim mo ordenais, divino arcanjo, vou fazer um pedido. Tenho no meu cerrado uma robusta nogueira, que me dá saborosas nozes. Os garotos destes contornos costumam virem roubá-las e eu, uma parte do ano, tenho de deixar Fiel guardando-as. 

Fico separada do meu pobre cão dias inteiros, enquanto faço o peditório: Isto é doloroso para ambos. Fazei, poderoso santo, que todo aquele, que trepar à minha nogueira, não possa descer sem o meu consentimento.  

—Assim seja, disse o santo, sorrindo se da ingenuidade da pobre Miséria. Bem-aventurados os simples e os pobres de espírito, porque d'eles é o reino dos Céus! 

E abrindo as azas librou-se aos espaços infinitos, abençoando Miséria, que glorificava Deus no seu arcanjo. 

Havia passado o mau tempo. A proteção do santo era evidente. Miséria, quando recolhia do peditório, vinha sempre com a sacola bem fornecida. 

Quanto aos garotos, que lhe roubavam as nozes, presos uma vez na arvore, Miséria ali os deixou algum tempo, e quando os soltou tal medo tiveram, que nunca mais voltaram. Os próprios aldeões afastavam-se receosos da arvore e tratavam melhor Miséria, pois que a julgavam possuir poderes sobrenaturais. Na maioria dos casos é o medo, que impede o homem de ser mau. Por isso, tanto Miséria como Fiel, viviam nessa tranquila bem-aventurança, longe do bulício do mundo, que é a verdadeira felicidade. 

Era pelo outono. Miséria contemplava as arvores já quase despidas das suas folhagens, e os pâmpanos, que tomavam essa cor avermelhada, prenuncio da sua queda, quando uma voz lúgubre chamou por ela três vezes:  

—Miséria! Miséria! Miséria! Dizia a voz. 

Fiel começou a uivar, como se augurasse morte de pessoa. Era um homem magro e esguio, velho e cadavérico, com uma comprida foice na mão, que assim chamava. Era a Morte.  

—Que queres de mim, homem de Deus? 

-— Venho cumprir a minha tarefa. Chegou a tua hora.  

—Pois já?  

 — Admiras-te? Que te importa a vida, tu que és pobre e velha e enferma? 

— Quanto a pobre, contestou Miséria, tenho pão na arca e lenha na lareira. Velha ainda não o sou porque vou fazer pelo Natal cento e trinta anos, e com respeito a ser enferma sou tão forte como tu.  

— O teu lugar é entre os bem-aventurados! 

 — Quando alguém morre, costuma dizer- se: passou d'esta para melhor. Ora eu não sei se no paraíso a vida é melhor. Prefiro a de cá. A caridade oficial é uma burla para quem é desgraçado. Além de que não posso separar-me do meu pobre cão.  

—Levarás o teu cão! 

Vendo irrevogável a sentença e que forçoso era conformar-se pediu à Morte alguns momentos para vestir o fato, que usava em dias domingueiros. 

Enquanto cuidava dos modestos atavios, disse à Morte: 

—Queres satisfazer-me um último desejo? 

Sobe à minha nogueira e colhe-me aquelas nozes, 

que lá estão. Será o último repasto, que faço n'este mundo! 

A Morte anuiu. Trepou e colheu as nozes, mas por mais esforços que fizesse, não pôde descer.  

—Ajuda-me, Miséria, que não posso descer! 

Gritou a Morte.  

— Olha, sabes o que te digo? É que não tenho pressa de ir gozar da bem-aventurança eterna. Deixa-te ficar , que estás bem! Vou ser benemérita da humanidade, sem que ninguém o saiba. 

E Miséria fechou a porta e deixou no cerrado a Morte empoleirada e presa na nogueira, cujos ramos, como se fossem os braços de um enorme polvo, a cingiam e lutavam com vantagem contra os esforços que fazia para libertar-se. 

Decorridos alguns meses espantaram-se os médicos de ninguém haver falecido. Os homeopatas atribuíam ao seu sistema de dinamização ou atenuação dos medicamentos as maravilhosas curas. 

Preconizando as teorias de Hannemann, alguns prescreviam o medicamento na mais alta atenuação, recomendado que os doentes nem sequer o cheirassem, mas que olhassem apenas para ele, conservando-o a distância e em vidro bem rolhado. 

Os médicos dosimétricos, pelo contrário, clamavam em altas vozes, que a humanidade se tornara longeva, graças à energia dos alcaloides, que empregavam. Os alopatas também queriam a gloria para si proclamando como um dogma o seu — contraria contrariis curantur e opondo-o ao similia similibus curantur dos homeopatas. Finalmente hidropatas, electropatas, hydro-sodopatas e metalopataas e muitos outros com patas e sem elas, todos pretendiam para si a gloria de haverem salvado da morte a humanidade. Durou este estado de coisas alguns anos e a humanidade começou a julgar-se imortal. Então celebraram- se festas de publico regozijo e de um extremo ao outro da terra os homens exultavam de contentes. 

Com o tempo esse contentamento foi desaparecendo. 

Velhos de 150, 160 e 180 anos, chegados à última idade da vida, privados da vista, do ouvido, do tato e do gosto, com a memoria enfraquecida pela idade e pela doença, maldiziam da vida, e desejavam a morte, como alívio a tantos males. 

As populações tinham aumentado de um modo extraordinário, e por isso a existência tornou-se mais cara e mais difícil. Reis, ministros e autoridades tornaram-se inválidos e por isso os governos foram fracos e não puderam obstar a que se praticassem todos os crimes. Grandes quadrilhas de salteadores roubavam, violavam, incendiavam, mas não assassinavam, porque não podiam. 

Finalmente a imortalidade tornou-se um flagelo e os homens procuraram a morte, com o mesmo ardor, com que então a evitavam. Médicos eminentes foram chamados, não para curar, mas para matar, e apesar dos seus esforços e de toda a sua perícia nada conseguiram. Clínicos famosos compuseram venenos subtis e fulminantes, mas sem efeito. Os elixires da morte tiveram voga como d'antes tinham tido os elixires de longa vida. Aqueles famosos instrumentos de suplicio da idade media, que torturavam a carne e os ossos, foram ineficazes. Alguns fizeram abundante uso de manteiga falsificada com margarina, do vinho fuchsionado, do pão com gesso e sulfato de cobre, mas todos estes e mais géneros, que d'antes tão prejudiciais eram à existência, foram impotentes para produzirem a morte. 

N'uma cidade da Europa, cujo nome me não lembra, reuniu-se um Congresso medico contra a vida. Como dantes esses congressos tinham sido impotentes contra a morte, também esse o foi contra a existência. Propôs esse congresso um premio de um milhão de cruzados a quem descobrisse o remédio infalível para dar a morte. Escreveram-se milhares de memorias, mas ninguém atinou com o remédio. 

Por este tempo havia na cidade de Braga um doutor medico chamado o dr. Priscus. Uma noite em que ele recolhia para casa pela estrada, que vai de Guimarães a Vizela, desviou-se do caminho e embrenhou-se entre os pinhais. Como passasse junto da nogueira da Miséria, ouviu uma voz plangente, que dizia:  

— Quem me libertará d'esta prisão, para que eu livre a terra da imortalidade, que é muito pior que a peste! 

Eu! disse o dr. Priscus, e ia estender a mão ao seu velho amigo, quando a Morte lhe disse que lhe não tocasse, mas que fosse buscar homens armados de machados para cortarem os ramos á nogueira. 

Retirou-se o medico e no dia seguinte, ao alvorecer, voltou com uns poucos de rachadores, que não somente não conseguiram cortar a nogueira, mas tendo-se imprudentemente agarrado aos ramos, foram enlaçados por estes e ficaram presos com a Morte. Vieram outros e outros sucessivamente e todos tiveram a mesma sorte. Finalmente foi tal o ruido dos seus gritos e gemidos, que Miséria, ainda que extremamente surda, ouviu-os e acudiu dizendo: 

— Sou eu a única pessoa que vos pode libertar! 

Consinto, mas com a condição de que a Morte não nos virá buscar nem a mim nem a Fiel, enquanto eu não a chamar três vezes. 

—Está combinado! E a Morte desceu e como era grande a tarefa, e todos tinham pressa de morrer, pediu ao seu amigo e compadre o dr. Priscus e aos seus colegas, que a auxiliassem, o que eles fizeram de boa vontade. 

Quanto a Miséria, não consta ainda que chamasse pela Morte três vezes. E por isso se conserva e conservará no mundo.  

Quando saímos do eremitério do cura de S. Miguel de Vilarinho, era noite. A lua filtrava os seus raios por entre o arvoredo. Através dos campos, das devesas e pinhais acompanhavam-nos os alegres cantares das mulheres que recolhiam da romaria de S. Adrião, um lugar próximo. E aquelas toadas e aqueles sítios deixaram-me uma impressão melancólica, que me é grato recordar. 

Eis algumas d'essas trovas, que me ficaram de memoria. 

 

Se te aborrece o querer-te, 

é forçoso o desprezar-te. 

Ensina-me a aborrecer-te, 

que eu não sei senão amar-te. 

 

Vae meu pobre coração, 

conta bem o que padeces, 

para ver se assim mereces 

tenham de ti compaixão. 

 

Tomara quem me dissera 

com toda a sinceridade, 

se prevalece a mentira 

contra a força da verdade. 

 

 

 


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